quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Ainda a Praxe...

Agradecendo desde já o trabalho a que "Sse deu para comentar o meu post anterior, exerço o meu direito de resposta até porque, pese embora algum humor, o texto a que respondo não extravasou o que considero ser o limite de respeitabilidade e elevação necessárias a um debate franco. Se me é permitida uma provocação, foi um texto quase, quase académico. Gostaria de ser mais breve - e temo que estejamos a entrar num ciclo de postagens e contra-postagens infrutíferas - mas cá vai, ainda assim.

Permitam-me começar por repudiar a exploração ad nauseum da trágica morte do Diogo, e o seu uso como argumento anti-tradição académica, mais ainda quando sustentados em especulações. Já muitas vezes disse que não me passa pela cabeça que alguém na tuna desejasse mal ao Diogo, e muitíssimo menos a sua morte. Note-se ainda que - num hipotético e improvabilíssimo cenário - alguém um dia falecesse num ensaio duma qualquer tuna por razões remotamente atribuíveis à mesma, o uso dessa fatalidade para associar situações tão distintas como as praxes iniciáticas e a praxe em tuna continuaria a ser falaciosa e manipuladora.
Infelizmente, nunca ninguém saberá ao certo os reais contornos daquela fatídica noite, e toda a gente beneficiaria com a verdade, seja ela qual for, mas uma coisa podem ter como certa os membros do "MATA", que não conheceram o Diogo, e essa é a dor sentida pelos seus amigos na tuna pela sua perda. Eu não conhecia muito bem o Diogo, mas partilho convosco uma lembrança sempre presente que tenho dele. Numa altura, no seu quarto em Fão, o Diogo apresentou-me aos "Pearl Jam" com a música "Alive", quando éramos jovens adolescentes. Desde então, sempre que oiço essa música (mesmo antes dele falecer), que me lembro dessa mesma manhã.

A necessidade que vi em dar um pequeno CV – injustamente explorada como pretenciosismo - resultou da ignorância de muitos dos contribuidores para a discussão que caracterizaram – erroneamente, claro – os academistas (prefiro ao termo “académico”, por associação a quem segue essa carreira profissional) como pessoas que se arrastam pela faculdade anos a fio. Para além disso, em termos de credibilidade para este assunto, creio serem mais relevantes os meus doze anos de academismo que os cursos que tenho ou o trabalho que desenvolvo. Posso, contudo, esclarecer que numa das minhas tunas temos um nível de sucesso escolar muitíssimo (próximo dos 100%) acima da média dos restantes alunos da universidade, tendo três de nós mais que uma licenciatura, sendo outros tantos Mestres “pré-bolonheses” e estando a grande maioria a trabalhar na sua área e dando o seu contributo para a sociedade. Na minha outra tuna, onde a média de idades está acima dos 28 anos, somos na quase totalidade licenciados - tendo alguns família com filhos, eu inclusive – e também trabalhos de reconhecido mérito. São as tunas, aliás, excelentes factores de fixação dos alunos nas suas respectivas universidades e até cidades de acolhimento, principalmente no interior do país, já para não falar no magnífico trabalho que (muitas) têm na valorização do melhor que o repertório português tem e na defesa dos instrumentos típicos. Mas não é o grau académico que confere maior ou menor legitimidade para “praxar”, saliente-se. Não se pode é cair na tentação de traçar uma caricatura dos academistas e, por cima, usá-la como argumento anti-Praxe ou anti-praxes. É intelectualmente desonesto e em nada contribui para o debate que urge fazer, e que foi já lançado aqui.

A questão das hierarquias, cuja menção foi em resposta a intervenção de outrem, é também aqui mal interpretada. Sou, no essencial, um defensor da meritocracia e não aceito a discriminação ao nível dos direitos, oportunidades ou dignidade fundamentada no berço ou posses, mas tampouco na capacidade, note-se. Atente-se, contudo, que reitero na íntegra tudo que disse sobre o estabelecimento de hierarquias - temporárias ou permanentes, complexas ou lineares - como condicionante biológica (goste-se das mesmas ou não) mas até nem considero que a sua natural ocorrência (e que leva à sua formalização, aquilo que tu chamas hierarquias artificiais) justifique, per se, o seu estabelecimento na Praxe. Ainda assim, tendo por certo que somos diariamente praxados pelo patrão, pelo professor, pelo presidente da junta, pelo pequeno administrativo da função pública - e, infelizmente, pouco podemos fazer acerca disso - até considero deveras refrescante que possamos aderir a um sistema hierárquico de livre e espontânea vontade, ainda que julguem não ser este o caso.

Onde vêem hierarquias artificiais e rígidas, eu vejo a equidade levada ao extremo. Quem hoje é praxado, se o desejar, poderá amanhã praxar, se assim o entender. Não há paralelo a isto em lado nenhum. Em que ramo de actividade todos os funcionários poderão chegar a quadros médios ou superiores (salvem-se as devidas distâncias)? Mas, pergunto-me, deveria ser assim, uma vez que praxar não é, no meu entender, para todos? Não, e isso é algo que terá que ser mudado. Há que ver as motivações de quem quer praxar. Se as mesmas não forem estritamente altruístas e não tiverem por objectivo maior a integração e formação dos colegas mais novos, então mais vale estarem quietos.

Outro ponto fulcral: a obrigatoriedade ou não-obrigatoriedade de participar nas praxes. Se há ou não coação, ameaça, ou chantagem de algum tipo. No meu entender, a adesão às praxes (ainda que não à Praxe, pois não podemos aderir a um conjunto de valores que inicialmente desconhecemos) é absolutamente facultativa, e confiámos no discernimento de quem é legal e racionalmente maturo para justificar isso mesmo, se devidamente informado (e esta é outra questão que deverá ser aprofundada). Se alguém passa a adolescência reivindicando autonomia, responsabilidade e maturidade, não pode depois a posteriori argumentar que foi obrigada a rebolar na porcaria (prática que em circunstâncias normais não aprovo) pela promessa de um dia poder fazer isso a outros e/ou de poder vestir um fato preto. Reitero: se há coação tão forte que leve cidadãos adultos a fazer o que não querem, então a mesma tem que ser condenada. Mas não é esse o caso (habitualmente, pois lamentáveis e condenáveis excepções há) e basta perguntar à grande maioria dos académicos qual a altura preferida dos anos de universidade, e responderão quase invariavelmente: "quando fui praxado" (e não "quando praxei", pois acreditem que só dá trabalho, se for bem feito). Gerações de antigos caloiros agradecidos à minha pessoa - modéstia à parte - atestam isso mesmo.

Até se fazer um estudo absolutamente isento do suposto nível de coação - se alguma houver - vamos apenas confiar na nossa própria própria interpretação dos factos, fundamentada apenas na nossa experiência próxima e não numa análise objectiva e imparcial. Por isso mesmo acabamos por ficar sempre na mesma. Nós aqui, vós aí, perpetuando o status quo.

A praxe não é fora-da-lei, como foi sugerido. O que acontece é que não é regulada pela lei, e nem precisa. Todos somos cidadãos sujeitos às mesmas leis - seja qual for o contexto - e, se alguém decide de sua livre e espontânea vontade "praxar" ou ser "praxado", está no seu direito, se tal não significar esbarrar na liberdade de outrem. Já o disse anteriormente: a vivência académica diz tanto respeito à vida privada dos alunos do Ensino Superior como outra coisa qualquer. As tentativas de banir ou regular pela Lei - ou regulamentos internos das universidades - a Praxe fazem-me lembrar aquele hábito idiota e tipicamente norte-americano de legislar sobre práticas vistas como "imorais" - e que mais não são do que opções do foro privado de cada um - por um determinado segmento da população

Sois anti-praxe. Sim senhor, como vós há muitos anti-qualquer coisa, e até aí tudo bem, viva o pluralismo. Não entendo é esta a intransigência - derivada de uma "santa" ignorância e pensamento enviesado - que não permite olhar para a Praxe (atente-se à maiúscula) como fenómeno cultural com inúmeros aderentes, aficionados, beneficiários e promotores. Isto não é a tourada (que condeno, evidentemente), meus senhores, onde o touro não só foi convidado à força para a "festa", como não tem ainda o discernimento e possibilidade de a evitar. Já agora, e extendendo a analogia, não se diverte o touro na arena (como acontece maioritariamente com todos os caloiros em praxe), nem o mesmo estabelece relações de amizade quer com os seus congéneres quer com os toureadores, nem adere de sua livre vontade à cultura e valores tauromáquicos nem - passados dois anos - tem a possibilidade de cravar umas banderilhas no dorso dos toureiros, se assim o entender, e eles deixarem.

Reparem que da única vez que se referendaram as praxes - apenas uma componente da Tradição Académica, ainda que a mais polémica - 90% dos alunos da UTAD (os únicos que a referendaram, ou amplamente sondaram, se preferirdes ser mais rigorosos) votaram pela sua manutenção. Destes, sei que todos foram praxados, mas aposto que nem 20% "praxam" ou alguma vez "praxaram". Porque "praxar" BEM dá trabalho, exige imaginação, presença de espírito, toma tempo valioso de estudo e implica responsabilidades acrescidas (se bem que muitos as esquivam), nomeadamente por quem temos a nosso cargo quando praxamos. Assim o é, na minha perpectiva de "praxar", e que não envolve gritos, ameaças, exercício físico, "tortura" psicológica, "binge drinking", brincadeiras de cariz maracadamente sexual, tentativas de sedução de caloiras/os ou rebolanços forçados na porcaria (se bem que já me diverti à bravacom dezenas de colegas, em equipas, disputando râguebi com um berlinde na lama)

Há que repensar as praxes e os seus intervenientes, concordo. Preocupam-me os métodos, abusos e ignorância de muitos que hoje praxam (ou julgam praxar) - bem como outras desvirtuações da tradição académica, que ficam para outra discussão - mas olho também com preocupação as posições extremistas (e acreditem que já tive que lidar com extremistas em virtude da área em que trabalho) de alguns "anti-Praxe", alimentadas não raras vezes por uma ideologia que, como qualquer outra, cega a quem delas padece para a objectividade e abertura necessárias a um debate esclarecedor e porventura transformador de mentalidades e comportamentos, dum e do outro lado da "fronteira ideológica". Assim sendo, não há concessões, toda a tradição académica é demonizada e declarada como um alvo a abater. "É anacrónica, descabida e desnecessária". Pois, mas apenas pela irrelevante minoria que opta por não a viver.

5 comentários:

Pedro Almeida disse...

ainda que sem tempo para grandes respostas, venho só transcrever as conclusões retiradas de 1 inquérito feito aos alunos recém-chegados à UTAD sobre as praxes, 2 anos antes do afamado referendo que chamaste à discussão:

"O sentimento da esmagadora maioria dos alunos que responderam é de que a praxe dura demasiado tempo, é humilhante, degradante, cansativa, geradora de problemas de saúde e prejudicial para a organização da vida pessoal e do estudo", afirmou o Artur Cristóvão, em declarações ao "Público".

Nota: a universidade do inquérito e referendo é exactamente a mesma.

Pedro Almeida disse...

só em jeito de conclusão, rapidamente se observa que as conclusões que retiraste do referendo não são tão lineares, né?

Unknown disse...

Resta saber em que enquadramento, e mesmo a quem esse referendo foi feito.
Os números de um referendo feito à posteriori a esse é completamente diferente e antagónico.
Vou tentar arranjar os resultados junto do Conselho de Veteranos da UTAD pois tenho em memória a polémica que esse refendo causou, mas não consigo precisar o porquê.

Sir Giga disse...

Eu explico. O referido "inquérito" foi realizado por Artur Cristovão. Apesar de ser alguém com a obrigação de fazer algo mais cientificamente credível, efectuou um inquérito a apenas 43 alunos do 1º ano, do Ex-DRM.
Eram quatro perguntas sobre as praxes: "para que serviu"
"coisas engraçadas"
"coisas sem graça mas aceitáveis"
"coisas inaceitáveis"
A metodologia foi péssima (na amostragem e estruturação do próprio inquérito), a existência de um não-declarado conflito de interesses do "investigador" revelou uma total falta de integridade científicas, inclusive na hora de reportar os resultados, escolhendo apenas os dados que mais lhe convieram.
No entanto, fiando-nos nestes dados, houve alunos que consideram terem havido situações inaceitáveis. Se as mesmas existiram, condeno-as. Agora, a questão é, porque não as condenaram na altura e só o fizeram à posteriori?

Sir Giga disse...

Se alguém estiver interessado nas questões éticas em inquéritos, siga o endereço:

http://www.apa.org/science/fairtestcode.html