Como tinha já referido, na Parte 1, é do meu entender que o artigo 121º revela, mais do que real preocupação com a preservação dos interesses da UTAD e seus alunos, uma acção do foro político (bem oportuna nesse sentido, saliente-se).
Fosse o artigo 121º uma salvaguarda dos direitos individuais de cada aluno, independentemente do seu número de matrículas e contexto, e ninguém neste momento questionaria as intenções por detrás do mesmo. Fosse o mesmo redigido para prever severas penalizações para quem, em qualquer circunstância, se fizesse valer de uma posição privilegiada – por antiguidade ou posição na UTAD - para, por qualquer razão, deliberadamente prejudicar e/ou tirar dividendos dos alunos mais desprotegidos, e o Conselho Geral da Universidade seria aplaudido por todos. Esta omissão de intenções e falta de sinceridade revelar-se-á, a curto prazo, como um tiro no pé dado por uma instituição que deveria viver DE, PARA e A FAVOR dos seus alunos, e ser a maior preocupada com o seu sucesso e bem-estar durante os anos em que frequentem a mesma. Como os estatutos consagram - e bem, note-se - TODOS somos membros da UTAD (artigo 6º).
Dissequemos então os itens do referido artigo propostos à Tutela, dos quais o 3º e 4º foram entretanto retirados, por “sugestão” do ministério. Reza então assim o Ponto 1:
1. Os actos designados por “praxe académica” são actos e iniciativas de carácter lúdico ou festivo, estritamente orientados para a integração dos novos alunos na vida académica, dependentes da adesão livre dos que a eles queiram associar-se, e não podem, em caso algum, revestir natureza vexatória ou de ofensa de natureza física ou moral dos participantes ou de quaisquer outras pessoas, nem podem prejudicar o normal funcionamento da Universidade, impedir ou dificultar a ida dos estudantes às aulas, ou perturbar a sua participação nas demais actividades escolares.
Apesar de aparentemente inócuo e, até certo ponto, bem intencionado, este será porventura, o item que mais me preocupa, pois revela grande desfasamento entre a UTAD e os seus alunos (no respeitante ao conhecimento dos seus costumes e tradições), grande ignorância cultural e prepotência desmedida. Antes de mais, e não sendo a UTAD uma subsidiária dos “Dicionários Hoüaiss”, não cabe ao seu Conselho Geral definir, por acto “iluminado”, a natureza - e muito menos regulamentar - dos usos, costumes e tradições centenários que constituem parte intrínseca da matriz cultural nacional e cuja manifestação é da esfera privada e direito inalienável de cada indivíduo ou grupo social, transfigurando-a e descaracterizando-a por via por via estatutária. O mesmo seria válido para qualquer outra actividade que diga respeito à vida pessoal de cada cada indivíduo ou grupo. Não é menos verdade que, se o objectivo era mudar atitudes e comportamentos, o caminho adoptado foi o pior. Fosse possível incutir por decreto valores e humanismo a todos os membros da UTAD, e acredito que tal teria há muito já sido feito.
Tenho-me divertido a encontrar diferentes costumes e tradições associados à vida estudantil universitária e que possam tomar o lugar do termo “praxe académica” – ladeado por aspas na sua versão original – neste primeiro ponto do artigo 121. Rio-me quando uso “engatar caloirinhas” (não que o aprove, mas fica engraçado), “pagar copos aos caloiros”, “roubar talheres na cantina” ou “vestir as cuecas do lado de fora das calças” . Torna-se, no entanto, ainda mais interessante quando os termos são “procurar conhecer os novos colegas”, “promover o amor à academia”, “fomentar a união dos recém-chegados ao curso”, “ajudar os caloiros a fazer horários”, “arranjar apontamentos aos mais novos”, “mostrar a cidade aos caloiros”, ou “enriquecer culturalmente os novos alunos”, pois todas estas actividades fazem também parte da recepção académica aos caloiros sendo até, o seu fim último.
Outra enormidade deste item é o facto do mesmo ignorar que há já um conjunto de normas, elaboradas por alunos e para os alunos, em constante revisão e melhoramento e que regula as actividades que circundam a recepção aos novos colegas. Trata-se do Código de Praxe da Academia de Trás-os-Montes e Alto Douro que, ao contrário do artigo 121, não pretende definir um conjunto de tradições tão antigas como Praxe Académica, mas antes – com humor, ironia e inteligência - enquadrá-la no contexto da Academia Alto-Duriense, defender os interesses dos caloiros, responsabilizar os alunos mais antigos pelas suas acções e responsabilidades e prevenir a desvirtuação dos valores académicos por quem deles se quiser servir para benefício próprio.
Entendo que a instituição UTAD pretenda salvaguardar os interesses dos recém-chegados durante as atribuladas semanas de recepção aos mesmos, mas o facto de o quererem fazer unilateralmente sem consultar o Órgão Máximo da Praxe – que não é, de maneira alguma a Associação Académica – é revelador do crescente autismo da UTAD-instituição. Um dos maiores erros cometidos é julgar que se conseguem alterar comportamentos sem colaboração daqueles a quem o pretendamos fazer, muito menos se os mesmos pertencerem a elite – no melhor sentido do termo - de jovens inteligentes, dinâmicos, interventivos, cientes dos seus direitos e orgulhosos das suas tradições, como se revelaram nesta altura serem os alunos da UTAD.
Algo que o nosso Magnífico Reitor certamente não ignora – ou não devia ignorar - é que os verdadeiros defensores da Tradição Académica são os primeiros a revoltar-se sempre que algum comportamento desviante de um aluno é tido como consequência da praxe – stricto sensu – em virtude de ter sido realizada a pretexto da mesma. Então, quando os mesmos são usados como argumento pelos opositores à Praxe – lato sensu – então ultrapassam-se todos os limites, quer esta falácia seja perpetrada por políticos, jornalistas ou outros intervenientes da sociedade civil.
De certa maneira, e permitam-me alguma liberdade na comparação, esta atitude equivale a atribuir culpa ao Catolicismo como religião pelos abusos sexuais cometidos por alguns dos seus sacerdotes, apenas porque usavam batina na altura dos mesmos, porque os realizaram na sacristia (ou imediações da Igreja), ou porque justificavam os seus actos às vitimas como prática comum e fruto da “Vontade Divina”. Pela mesma razão, o facto de um polícia, com outros polícias, torturar um suspeito num interrogatório dentro de uma esquadra, não significa que toda a Polícia endosse a tortura como método, ou que se acabássemos com a Polícia acabaríamos com esta prática. Assim, argumentos como "se não houvesse Tradição Académica, não haveria praxes, ergo não haveria abusos" são absolutamente falaciosos e desonestos.
É verdade que, a pretexto da “praxe”, muitos alunos aproveitam todos os anos para descarregar frustações e revelar a sua verdadeira natureza, mascarada durante o resto do ano. Acontece, no entanto, que todos aqueles que assim procedem desvirtuam o sentido da praxe e subvertem os seus valores, acabando por alimentar concepções ignorantes e preconceituosas – oops, pleonasmo – de indivíduos que vêem a Tradição Académica, vulgo Praxe (uma vez mais, note-se o uso do “P” maiúsculo) como uma manifestação residual ou revivalista de “Estado-novismo”. Para todos esses aqui fica um breve – e, espero eu, inteligível para os mesmos – esclarecimento: praxe é Praxe (destaque à diferente capitalização de cada um dos “pês”) e crimes são casos de polícia.
Acho que me estendi um pouco na apreciação deste ponto. Vamos ao Ponto 2:
2. Nenhum estudante poderá ser obrigado a participar em qualquer acto de “praxe académica” contra a sua vontade, cabendo a toda a comunidade académica a obrigação de velar pelo cumprimento desta norma, de que lhe deverá ser dado conhecimento, no acto da sua inscrição.
Este ponto é completamente redundante, pois tal está já consagrado no Código de Praxe, e há muito que a comunidade académica vela para que seja cumprido, já para não falar que somos todos maiores, vacinados e responsáveis pelos nossos actos, inclusive os caloiros. Se alguém de alguma maneira forçar outro a agir contra a sua vontade não está, de maneira alguma, a agir dentro das normas ou do espírito da Praxe.
3. Os actos e iniciativas de “praxe académica” só são considerados como tal quando realizados no campus universitário ou nos espaços imediatamente adjacentes a instalações da Universidade, sendo expressamente proibida a sua prática noutros lugares e, ainda, no interior dos edifícios pedagógicos, nas bibliotecas, nas cantinas, nos bares e nas residências de estudantes.
Importam-se de repetir? Lembram-se do jogo de trocar o termo “praxe académica” por qualquer outra prática, uso ou costume? Pois, embora nem seja preciso, se o fizermos torna-se ainda mais evidente o modo o carácter bacoco e inútil deste ponto. Até o ministro Mariano Gago se deve ter rido à força toda com isto. Nem vou perder mais tempo a demonstrar a imbecilidade deste ponto.
4. O período em que é permitida a realização de actos e iniciativas de “praxe académica” abrange apenas o período de matrícula dos estudantes que ingressem no 1º ano, pela 1ª vez, na 1ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior, e as duas semanas imediatamente subsequentes e, ainda, a data que vier a ser fixada como “dia do caloiro”.
Também não é de admirar que a tutela tenha mandado suprimir este ponto. A UTAD NÃO PODE ESTABELECER LIMITES TEMPORAIS A PRÁTICAS QUE DIZEM RESPEITO À VIDA PESSOAL DOS SEUS ALUNOS. Isto já para não falar que, mesmo dentro de portas, teriam imensa dificuldade em distinguir o que se enquadra na "praxe" ou não. Já praxei sozinho 50 caloiros durante uma tarde inteira e se alguém perguntasse a qualquer um se estava a ser praxado, todos diriam que tal era impossível, já que a praxe estava proibida no campus. Como referi, este ponto do artigo foi entretanto retirado, mas parece que até já estou a ver a seguinte cena:
Funcionário - "O Sr. está a praxar fora da época estabelecida?"
Aluno - "Se estou trajado, estou em Praxe, não acha? Tenho que ir mudar de roupa a casa?"
Funcionário - "Aha, então e o menino com cuecas fora das calças?"
Caloiro - "Porque quer saber, é algum crítico de moda?"
Funcionário - "Mandaram-no fazer alguma coisa contra a sua vontade?"
Caloiro - "Vê aqui alguma criança, alguém com problemas mentais, ou algum tipo de força exercida?" "Não somos todos maiores e vacinados?"
Aluno - "Já agora, vim do gabinete de um docente e ele negou-me direitos que me assistem, segundo as Normas Pedagógicas. Será que fui praxado?"
Funcionário - "Hem...hum...adeus, boa tarde"
Caloiro - "Adeus, boa tarde"
Aluno - “G`andas malucos, esta malta do Conselho Geral da UTAD. Então esta invenção do dia do caloiro., pá...que grande ideia! Espera...mas...o dia do caloiro não é todos os dias? Então bora lá...”
Mas, agora a sério, quem é que redigiu estes itens?
Resumindo (já que este “monólogo” vai longo), a inclusão deste artigo é, sob todos os pontos de vista, lamentável pois, ao invés de demonstrar uma real preocupação pelo bem-estar de todos os alunos e em todas as circunstâncias, é simplesmente revelador da concepção que o Conselho Geral tem dos seus alunos e do tipo de relação que entendem a UTAD dever ter com os mesmos.
Dia 10 de Novembro, o Conselho de Veteranos da UTAD pretende referendar a continuidade da Praxe na Academia Transmontana e Alto-Duriense. Quem for a favor da Praxe, vote em conformidade. Quem o não for, e depois de verdadeiramente esclarecido acerca daquilo que está a sufragar, então que goze em plenitude da oportunidade que o Conselho de Veteranos lhe proporciona e vote em consciência, pois democracia é isso mesmo.
Entretanto, vamos estar atentos, já que o Conselho Geral não se dá por vencido e pretende acrescentar um anexo aos estatutos para regular a Praxe. Só lhes posso desejar boa sorte...
Um comentário:
não estavas MESMO à espera que eu lesse isto td pois não?
Postar um comentário