Agradecendo desde já o trabalho a que "Ser.r.alves" se deu para comentar o meu post anterior, exerço o meu direito de resposta até porque, pese embora algum humor, o texto a que respondo não extravasou o que considero ser o limite de respeitabilidade e elevação necessárias a um debate franco. Se me é permitida uma provocação, foi um texto quase, quase académico. Gostaria de ser mais breve - e temo que estejamos a entrar num ciclo de postagens e contra-postagens infrutíferas - mas cá vai, ainda assim.
Permitam-me começar por repudiar a exploração
ad nauseum da trágica morte do Diogo, e o seu uso como argumento anti-tradição académica, mais ainda quando sustentados em especulações. Já muitas vezes disse que não me passa pela cabeça que alguém na tuna desejasse mal ao Diogo, e muitíssimo menos a sua morte. Note-se ainda que - num hipotético e improvabilíssimo cenário - alguém um dia falecesse num ensaio duma qualquer tuna por razões remotamente atribuíveis à mesma, o uso dessa fatalidade para associar situações tão distintas como as praxes iniciáticas e a praxe em tuna continuaria a ser falaciosa e manipuladora.
Infelizmente, nunca ninguém saberá ao certo os reais contornos daquela fatídica noite, e toda a gente beneficiaria com a verdade, seja ela qual for, mas uma coisa podem ter como certa os membros do "MATA", que não conheceram o Diogo, e essa é a dor sentida pelos seus amigos na tuna pela sua perda. Eu não conhecia muito bem o Diogo, mas partilho convosco uma lembrança sempre presente que tenho dele. Numa altura, no seu quarto em Fão, o Diogo apresentou-me aos "Pearl Jam" com a música "Alive", quando éramos jovens adolescentes. Desde então, sempre que oiço essa música (mesmo antes dele falecer), que me lembro dessa mesma manhã.
A necessidade que vi em dar um pequeno CV – injustamente explorada como pretenciosismo - resultou da ignorância de muitos dos contribuidores para a discussão que caracterizaram – erroneamente, claro – os academistas (prefiro ao termo “académico”, por associação a quem segue essa carreira profissional) como pessoas que se arrastam pela faculdade anos a fio. Para além disso, em termos de credibilidade para este assunto, creio serem mais relevantes os meus doze anos de academismo que os cursos que tenho ou o trabalho que desenvolvo. Posso, contudo, esclarecer que numa das minhas tunas temos um nível de sucesso escolar muitíssimo (próximo dos 100%) acima da média dos restantes alunos da universidade, tendo três de nós mais que uma licenciatura, sendo outros tantos Mestres “pré-bolonheses” e estando a grande maioria a trabalhar na sua área e dando o seu contributo para a sociedade. Na minha outra tuna, onde a média de idades está acima dos 28 anos, somos na quase totalidade licenciados - tendo alguns família com filhos, eu inclusive – e também trabalhos de reconhecido mérito. São as tunas, aliás, excelentes factores de fixação dos alunos nas suas respectivas universidades e até cidades de acolhimento, principalmente no interior do país, já para não falar no magnífico trabalho que (muitas) têm na valorização do melhor que o repertório português tem e na defesa dos instrumentos típicos. Mas não é o grau académico que confere maior ou menor legitimidade para “praxar”, saliente-se. Não se pode é cair na tentação de traçar uma caricatura dos academistas e, por cima, usá-la como argumento anti-Praxe ou anti-praxes. É intelectualmente desonesto e em nada contribui para o debate que urge fazer, e que foi já lançado aqui.
A questão das hierarquias, cuja menção foi em resposta a intervenção de outrem, é também aqui mal interpretada. Sou, no essencial, um defensor da meritocracia e não aceito a discriminação ao nível dos direitos, oportunidades ou dignidade fundamentada no berço ou posses, mas tampouco na capacidade, note-se. Atente-se, contudo, que reitero na íntegra tudo que disse sobre o estabelecimento de hierarquias - temporárias ou permanentes, complexas ou lineares - como condicionante biológica (goste-se das mesmas ou não) mas até nem considero que a sua natural ocorrência (e que leva à sua formalização, aquilo que tu chamas hierarquias artificiais) justifique, per se, o seu estabelecimento na Praxe. Ainda assim, tendo por certo que somos diariamente praxados pelo patrão, pelo professor, pelo presidente da junta, pelo pequeno administrativo da função pública - e, infelizmente, pouco podemos fazer acerca disso - até considero deveras refrescante que possamos aderir a um sistema hierárquico de livre e espontânea vontade, ainda que julguem não ser este o caso.
Onde vêem hierarquias artificiais e rígidas, eu vejo a equidade levada ao extremo. Quem hoje é praxado, se o desejar, poderá amanhã praxar, se assim o entender. Não há paralelo a isto em lado nenhum. Em que ramo de actividade todos os funcionários poderão chegar a quadros médios ou superiores (salvem-se as devidas distâncias)? Mas, pergunto-me, deveria ser assim, uma vez que praxar não é, no meu entender, para todos? Não, e isso é algo que terá que ser mudado. Há que ver as motivações de quem quer praxar. Se as mesmas não forem estritamente altruístas e não tiverem por objectivo maior a integração e formação dos colegas mais novos, então mais vale estarem quietos.
Outro ponto fulcral: a obrigatoriedade ou não-obrigatoriedade de participar nas praxes. Se há ou não coação, ameaça, ou chantagem de algum tipo. No meu entender, a adesão às praxes (ainda que não à Praxe, pois não podemos aderir a um conjunto de valores que inicialmente desconhecemos) é absolutamente facultativa, e confiámos no discernimento de quem é legal e racionalmente maturo para justificar isso mesmo, se devidamente informado (e esta é outra questão que deverá ser aprofundada). Se alguém passa a adolescência reivindicando autonomia, responsabilidade e maturidade, não pode depois a posteriori argumentar que foi obrigada a rebolar na porcaria (prática que em circunstâncias normais não aprovo) pela promessa de um dia poder fazer isso a outros e/ou de poder vestir um fato preto. Reitero: se há coação tão forte que leve cidadãos adultos a fazer o que não querem, então a mesma tem que ser condenada. Mas não é esse o caso (habitualmente, pois lamentáveis e condenáveis excepções há) e basta perguntar à grande maioria dos académicos qual a altura preferida dos anos de universidade, e responderão quase invariavelmente: "quando fui praxado" (e não "quando praxei", pois acreditem que só dá trabalho, se for bem feito). Gerações de antigos caloiros agradecidos à minha pessoa - modéstia à parte - atestam isso mesmo.
Até se fazer um estudo absolutamente isento do suposto nível de coação - se alguma houver - vamos apenas confiar na nossa própria própria interpretação dos factos, fundamentada apenas na nossa experiência próxima e não numa análise objectiva e imparcial. Por isso mesmo acabamos por ficar sempre na mesma. Nós aqui, vós aí, perpetuando o status quo.
A praxe não é fora-da-lei, como foi sugerido. O que acontece é que não é regulada pela lei, e nem precisa. Todos somos cidadãos sujeitos às mesmas leis - seja qual for o contexto - e, se alguém decide de sua livre e espontânea vontade "praxar" ou ser "praxado", está no seu direito, se tal não significar esbarrar na liberdade de outrem. Já o disse anteriormente: a vivência académica diz tanto respeito à vida privada dos alunos do Ensino Superior como outra coisa qualquer. As tentativas de banir ou regular pela Lei - ou regulamentos internos das universidades - a Praxe fazem-me lembrar aquele hábito idiota e tipicamente norte-americano de legislar sobre práticas vistas como "imorais" - e que mais não são do que opções do foro privado de cada um - por um determinado segmento da população
Sois anti-praxe. Sim senhor, como vós há muitos anti-qualquer coisa, e até aí tudo bem, viva o pluralismo. Não entendo é esta a intransigência - derivada de uma "santa" ignorância e pensamento enviesado - que não permite olhar para a Praxe (atente-se à maiúscula) como fenómeno cultural com inúmeros aderentes, aficionados, beneficiários e promotores. Isto não é a tourada (que condeno, evidentemente), meus senhores, onde o touro não só foi convidado à força para a "festa", como não tem ainda o discernimento e possibilidade de a evitar. Já agora, e extendendo a analogia, não se diverte o touro na arena (como acontece maioritariamente com todos os caloiros em praxe), nem o mesmo estabelece relações de amizade quer com os seus congéneres quer com os toureadores, nem adere de sua livre vontade à cultura e valores tauromáquicos nem - passados dois anos - tem a possibilidade de cravar umas banderilhas no dorso dos toureiros, se assim o entender, e eles deixarem.
Reparem que da única vez que se referendaram as praxes - apenas uma componente da Tradição Académica, ainda que a mais polémica - 90% dos alunos da UTAD (os únicos que a referendaram, ou amplamente sondaram, se preferirdes ser mais rigorosos) votaram pela sua manutenção. Destes, sei que todos foram praxados, mas aposto que nem 20% "praxam" ou alguma vez "praxaram". Porque "praxar" BEM dá trabalho, exige imaginação, presença de espírito, toma tempo valioso de estudo e implica responsabilidades acrescidas (se bem que muitos as esquivam), nomeadamente por quem temos a nosso cargo quando praxamos. Assim o é, na minha perpectiva de "praxar", e que não envolve gritos, ameaças, exercício físico, "tortura" psicológica, "binge drinking", brincadeiras de cariz maracadamente sexual, tentativas de sedução de caloiras/os ou rebolanços forçados na porcaria (se bem que já me diverti à bravacom dezenas de colegas, em equipas, disputando râguebi com um berlinde na lama)
Há que repensar as praxes e os seus intervenientes, concordo. Preocupam-me os métodos, abusos e ignorância de muitos que hoje praxam (ou julgam praxar) - bem como outras desvirtuações da tradição académica, que ficam para outra discussão - mas olho também com preocupação as posições extremistas (e acreditem que já tive que lidar com extremistas em virtude da área em que trabalho) de alguns "anti-Praxe", alimentadas não raras vezes por uma ideologia que, como qualquer outra, cega a quem delas padece para a objectividade e abertura necessárias a um debate esclarecedor e porventura transformador de mentalidades e comportamentos, dum e do outro lado da "fronteira ideológica". Assim sendo, não há concessões, toda a tradição académica é demonizada e declarada como um alvo a abater. "É anacrónica, descabida e desnecessária". Pois, mas apenas pela irrelevante minoria que opta por não a viver.